A escritora sindicalizada Patrícia Baikal (matrícula 195), autora de “Mariposa- Asas que mudaram a direção do vento”, ficou em 3º lugar na categoria Contos, do Prêmio Campos do Jordão de Literatura 2015.
Duas Palavras
A primeira vez que Gilberto entrou no quarto de Adélia, surpreendeu-se com as paredes. Havia centenas de palavras rabiscadas nelas. “Os homens sempre deixam duas palavras para mim, antes de deixarem meu quarto”, ela explicou. Era um costume que se dava em todos os quartos daquela casa e também nas redondezas. Ninguém sabia como todos haviam se adaptado àquela prática. Ele nada disse e, alvoroçado, despiu-se rapidamente, embriagado com o cheiro de canela que se esparramava pelo ambiente.
Sobre a cama, unidos num só, ele imaginava as palavras que escreveria. Ao suspirar o último gemido no ouvido dela, após tantos outros, ele fez um pedido: “Quero escrever as duas palavras nos seus seios”. Ela concordou, e logo abriu o armário para procurar a caneta. Gilberto marcou os seios da moça, desenhando cada letra com o cuidado que aquela pele merecia. Adélia sentia a tinta fria, quase dolorida, penetrando em seus poros. “Amanhã, volto para te ver”, despediu-se.
Enquanto o tempo resistia à força do desejo de Adélia, ela olhava para cada palavra rabiscada nas paredes, e se sentia sozinha, como se nunca houvesse sido mulher de alguém, e como se ninguém tivesse sido dela até então. No espelho, Adélia viu refletida uma palavra em cada seio e, no banho, protegeu-as da água devastadora. Sentia as letras tatuadas na sua pele, ardendo com uma força que ela não imaginava que pudessem exercer.
Gilberto voltou uma semana depois e, dessa vez, foi ela quem pediu a ele que a deixasse escrever em seu corpo. “Quero escrever em suas coxas”, ela disse. Ele discordou por quase um segundo, mas logo cedeu. Ela escreveu a primeira palavra na coxa esquerda dele e, depois, na direita. Ela imprimia com força a tinta na pele, que era para ela não se esvair com o tempo, com qualquer troca de roupa ou beijos de outra moça.
No dia seguinte, Adélia não quis receber as visitas de sempre. Não desceu para o salão lotado de gente, não cantou nem bebeu. Comeu algumas fatias de pão ao meio dia e, às cinco horas da tarde, deitou-se na cama para aguardar Gilberto. Às oito da noite, Gilberto entrou no quarto sem pedir permissão, beijou-a como não houvera feito ainda e, antes mesmo de se deitar, empossou-se da caneta sobre um criado-mudo e escreveu nos lábios de Adélia as mesmas duas palavras que havia escrito em seus seios. Ela retirou a caneta dos dedos de Gilberto e fez o mesmo nos lábios dele. Naquela noite, eles adormeceram juntos, e sonharam que suas peles estavam manchadas como aquelas paredes.
Adélia acordou com o cheiro de café que vinha do salão, misturado à canela que inebriava os lençóis. Gilberto já não estava ao lado dela, e havia deixado o quarto, em busca de outras andanças. Por alguns instantes, ela permaneceu na cama, imaginando se ele havia se banhado, se a tinta dos lábios dele havia se escorrido com a água quente do chuveiro. As duas palavras que Adélia escrevera estariam agora no fundo do ralo, perdidas entre cabelos molhados e esquecidos.
Ela se levantou, desceu as escadas e pediu um balde com água e sabão. Sozinha, lavou as paredes de seu quarto com espuma, até que não restasse uma só palavra nelas. Depois, lembrou-se do que escrevera nas coxas do homem que nunca mais veria: Meu homem. Ela se olhou novamente no espelho e leu, em voz alta, as duas palavras que seu corpo mostrava, antes que fossem apagadas pela espuma que tinha nas mãos: Minha mulher. Daquele dia em diante, era Adélia quem escrevia nas paredes do seu quarto, preenchendo o vazio do branco com inúmeras palavras. Suas palavras e de mais ninguém.
Patrícia Baikal